quinta-feira, 22 de julho de 2010

DIA 12 – 21 de julho

Lembro-me de acordar com frio. Uma preguiça típica de domingo. Estava de férias e isso não importava muito. Aos meus pés sentia a presença quente de Greif, um pequinês preto com uma mecha branca no peito, que levantava a cabeça ao sentir que estava sendo observado por mim. Estava conosco havia apenas alguns meses  – meu presente, um companheiro para brincadeiras. Percebo que minha mãe chegara na porta do quarto e, com um sorriso incontido, fazia menção de entrar para me acordar de vez. "Hijito Mio, feliz cumpleaños."

O quarto é simples, tem um chão de tacos com peças de madeira clara, um armário de madeira mais escura, cujas portas insisto que fiquem abertas. Sempre achei que alguém se esconderia ali. De fato, não havia muito, tinha considerado pedir que o abajur que ficava longe da cama, fosse colocado mais próximo a mim, por questões de segurança emocional. Sim, eu com frequência checava embaixo da cama, o que era relativamente rápido e fácil, mas ainda enfrentava uma certa dificuldade com o armário. No chão, um tapete pequeno, que servia para evitar o contato com chão extremamente frio no inverno, e também as funções de campo de futebol para partidas clássicas entre meus brinquedos. Minha avó costuma comprar pequenos conjuntos na feira-livre que traziam animais de plástico, leões, ursos, etc. Havia também uma infinidade de bonecos, que vinham nos potes de Toddy, que consumia, às vezes puro, para que acabassem logo e chegasse o próximo brinquedo. Eram, na maioria das vezes,  soldadinho de plástico em posições de batalha. Lá fora a guerra do Vietnã virava brinquedo de criança e eu mal sabia que existiam os Estados Unidos, ou onde era o Vietnã. Embora já soubesse ler desde os 5 anos, e já fosse a escola, meu conhecimento de geografia misturava florestas, com mares distantes, castelos com cidades. O mundo era baseado em contos espanhóis lidos por minha mãe e os primeiros livros que lia em meu quarto. Basicamente Monteiro Lobato e alguns clássicos da literatura infanto-juvenil mundial que meu pai trazia da banca de jornais. Seu critério para escolher tais livros era, em grande parte, associado ao marketing e força de venda de nosso jornaleiro. Não me admira que aos 10 anos já lesse Machado de Assis (sem entender quase nada, é claro).

Desperto, minha mãe me beija e abraça com carinho e logo vem meu pai com um prato de pão com manteiga, com açúcar. A preocupação com cáries ou os efeitos nocivos do açúcar não existiam no fim da década de 60. Digo a minha mãe que quero ver TV e ela me diz que seria melhor ir brincar com meu carrinho de rolimã, já que a programação ainda não havia começado. As 11:30 já podíamos ligar a TV e, embora sem programação, deixávamos o sinal da transmissora, um índio entre alguns elementos geométricos no ar, com o som alto para saber quando começasse o programa de domingo. Havia desenhos ainda de manhã, Jambo e Ruivão, era meu favorito, na TV Paulista (atual Rede Globo) com seus vilões recorrentes, os irmãos Mata-a-dor e Matador.

Eu e Greif vamos brincar com o carrinho de rolimã ao redor da casa. Pego todos os meus brinquedos menores, os distribuo ao longo do corredor lateral de minha casa em 3 pontos e assumo que meu carrinho é um ônibus. Saio em minha rotina de pegar passageiros, sempre acompanhado por meu cachorro, que faz as vezes de guarda e companheiro de aventuras.

Sinto-me especialmente animado com a chegada no início da tarde de meus primos e de minha querida tia Luz. Sei também que vou ganhar presentes... Pouco antes da chegada dos primeiros convidados, minha mãe pede que coloque a roupa nova da festa. Digo que não quero, e sou convencido com o argumento que papai tinha contratado um fotógrafo para tirar fotos do evento e que algum dia eu iria olhar para elas e lembrar como aquele dia tinha sido importante. A roupa de festa consistia de um blazer creme, camisa branca com uma gravatinha borboleta azul clara, calças de tergal azul escuras e sapatos pretos. Estava frio, então não reclamei do blazer, mas a gravata...

Dona Antonia, espanhola amiga de meus pais, doceira de mão cheia, acabara de chegar com o bolo. Era lindo, um carrossel no meio, com cavalos de plástico e algumas referências a um parque de diversão. Eu entregava os chapeuzinhos aos que chegavam e me certificava que todos os usassem durante as brincadeiras que minha tia promovia para as crianças no terraço, na frente de casa. Eu e meus primos brincávamos no chão desse terraço de cerâmica vermelha, entre vasos de antúlios, alternando esconde-esconde, pega-pega com as as histórias de meu primo mais velho, Nenito, de seus feitos na vizinhança. Falávamos de futebol e da bola que eu iria ganhar no Natal, de capotão, com 24 gomos, quase oficial.

Lembro-me bem do parabéns. Pediram-me que sorrisse. Talvez começasse ali minha dificuldade com sorrisos frente as câmeras. Tentei meu melhor Xis enquanto me apoiava em meu primo André, que insistia em não saber o que se passava. Aos 4 anos, aquele menino, parecia querer roubar a cena. Minha tia o segura a tempo da foto ser feita.

Logo cortaríamos o bolo, a ser acompanhado de refrigerantes que meu avô trazia da fábrica onde trabalhava, Grapetes e Crushes em profusão.

Os adultos riam e contavam história de sua hispanidade. Minha avó provocava meu pai, que por sua vez, se aquietava, fugindo para a cozinha onde preparava sanduiches com chouriço para as visitas. Vinho, pão e chouriço. Coisas da raça, celebrada em todos os eventos. Havia um senso de pertencimento a colônia espanhola que só viria a entender anos depois.

Ao anoitecer, todos se foram. Apenas o Sr. Euzébio e meu tio Nico tinham carro, os demais tinham que ir de ônibus, ou a pé. Assim, as nove da noite já estava na cama. Me colocaria a ler meus livros, Reinações de Narizinho, de Lobato ou qualquer outro conto de uma coleção espanhola que minha avó tinha nos dado. Na época ficava horas em meu quarto lendo e me perdendo naquelas histórias de um mundo então distante, mas mais perto a cada ano.

Cresci, e raras vezes lembro-me daquele espaço, ou daqueles dias com tamanho detalhe. Hoje completo 48 anos (apenas 48, como a tela de meu Skype insiste em frisar) e estou a mais de 4 mil quilômetros daquele quarto em Santo André, onde passei minha infância e adolescência, onde hoje tenho um escritório que ainda guarda alguns daqueles livros e sua força em minha construção literária. Se é verdade que somos o que comemos, intelectualmente, acredito que somos o que lemos.

Ao acordar, entre ligações de amigos queridos e diversas felicitações eletrônicas de pessoas que fazem parte do que sou, um e-mail se destaca. Minha querida Suzie, que não encontro há 17, 18 anos, manda-me uma foto, digitalizada de um original que ela guarda com carinho há mais de 20 anos, pra lembrar do menino que por vezes havia esquecido dentro de mim.

Me pego chorando incontrolavelmente com o ato singelo dessa amiga especial. Através dela, agradeço a todos os que me amam, pelo ato de doação verdadeira e terna que está no desejo desses amigos queridos. 


Obrigado.




domingo, 18 de julho de 2010

DIA 08 – 17 de julho

Dia de sol. Sunny California.
Dia de ir à praia. Encontro com Mônica  na mesma esquina em que nos revemos após 15 anos em 2009 (East Peltason x Campus Drive).

Há um ano, lembro-me da situação impar: Após combinarmos que ela viria de Los Angeles, onde mora,  para me pegar e irmos à praia, acertamos o melhor ponto de encontro, próximo ao campus, mas alguns itens básicos passaram desapercebidos. Qual era o carro em que ela estaria? Um dado insignificante, se ambos não tivéssemos mudado tanto ao longo dos anos. Afinal, eu tinha 52 quilos, magérrimo, e não os 85 de agora; tinha barba e cabelos longos, e agora não tenho barba e os cabelos..., bem ainda tenho grande parte deles.

Eu tinha a imagem daquele sorriso cativante da menina que estudava comigo e passava tardes em meu quarto discutindo religião, música, política, todo e qualquer tema que surgisse. Discordávamos de quase tudo, mas sempre acabávamos nos abraçando e revalidando uma de minhas amizades mais antigas. Ela me adotou como irmão, e se refere e apresenta aos outros como tal, até hoje, como percebi nesse sábado, “This is my little brother...” Ouvi isso algumas vezes durante o dia na praia de Laguna. Mas por uma razão o outra deixamos de nos ver por quase duas décadas e quando ela passou por mim, de carro duas vezes, não nos reconhecemos.... Foi preciso um telefonema e a pergunta embaraçosa, “Oi, Cé, você é aquele cara que tá na esquina com a mão no poste?” Pois é, era eu.

Um ano depois, já nos vimos no Brasil há 3 meses, e agora já atualizei seu rosto em minha mente. Consigo ver a menina no sorriso, na voz, que traz o timbre como assinatura prevalecente. No fundo, descubro que ainda somos aqueles garotos de 15, 16 anos discutindo como seria possível que eu pudesse gostar do ABBA e de música clássica ao mesmo tempo. Those were the days of our lives. Anos depois, Mônica foi para Santos. Foi fazer Arquitetura. Eu, três anos mais novo; e menino (evoluímos mais devagar, eu sei, já admiti isso em muitas postagens), sentia falta da amiga, que via menos, mas via, quando íamos dançar em um show em SP ou quando ela me levava com sua CG 125 vermelha pra passear. Ela morava em uma república (a famosa “70”) e me dizia o quanto era legal a FAUS. O fato é que segui seus passos, entrei na mesma faculdade, morei na mesma república e como um irmão mais novo, às vezes pedia colo e tomava broncas.

Os tempos eram de muita correria, a vida era veloz, e por fim, a loucura e excitação da época nos afastou. Lembro-me com carinho de nossos ensaios de beijos na Sala 3. Ficávamos sem se ver por vezes um mês, dois, e quando nos víamos, nos beijávamos, abraçávamos como querendo dizer, “Olha, não me esquece, viu? Te amo.” E assim fomos, partimos para aventuras pelo mundo e ela veio para os EUA. Casou, descasou, lutou muito, ainda luta. Agora, a achei. Não perco mais.

Na praia, procuramos entender o mundo a nossa volta pelo prisma e lente que construímos ao longo dos anos. Rimos de um americano em um protesto ridículo em prol dos soldados em guerra, brincamos com cães que, aos montes, correm pelos jardins, assistimos ao pessoal jogando basquete em quadras na beira do mar, caminhamos pelas pedras, pelas calçadas da bela Laguna Beach, com suas casas tombadas pelo patrimônio, com flores diversas da região e algumas mostras de arte kitch dignas de um catálogo, ou pelo menos um post sobre o tema.

Quanto mais nos atualizávamos um com o outro, mais revelávamos o que fomos e representamos um para o outro. Acho que invariavelmente vamos ser amigos até o fim de nossas vidas, concluo feliz.

Rochas perto da Praia


Piscinas naturais. Água gelada (10 graus)

 
Arte Kitch, índia de pedra com pomba na mão. (esquina do corpo de bombeiros)


Visão da escultura (que conta com a imagem do pai e do filho) e os bombeiros ao fundo.


Kitch em movimento! (Fusca)


Em um banco "moderno," três pedras coloridas e, debaixo dele, sapatos de chumbo. Uma das pernas do banco é uma caixa de vidro que contem sapatilhas de balé brancas. (Vai entender!)

Placa de tombamento de imóvel, com data de construção.


Detalhe de animais na Bay Window. Todos de plástico!


Folhas gigantes!


Plantas desérticas.


E flores...


Pacific  Coast Highway. Sou mais a Rio-Santos!

No fim da tarde tenho uma festa na casa da diretora da extensão universitária, a Sra. Angelica Volkman, ou para os amigos, Gely, mais uma pessoa querida aqui nos EUA. Convido Mônica para ir comigo, mas percebo que está inquieta e não se motiva com a idéia de ter que lidar com estranhos e agir socialmente. Entendo bem isso. Sei que por trás daquela garota, e estampado em seu jeito de corpo, está uma menina tímida.

Combinamos de nos ver de novo em duas semanas. Ela teria acabado sua casa nova e eu passaria o fim de semana lá. Volto ao campus, tomo um banho (percebo que me queimei ao sol) e vou para  a festa com a van da universidade.


Ao chegar lá, reencontro Henry, marido da Gely, alguns alunos do programa que já haviam chegado e outros convidados internacionais. Sinto-me feliz por estar no lugar que queria estar com pessoas que gosto. Sinto-me ainda melhor quando  a certo momento Gely coloca um CD pra tocar que entendo é em minha homenagem. Guitarra Brasileira, de Heraldo do Monte. Obra belíssima, do querido Heraldo, cuja produção gráfica, incluindo a capa, é projeto meu. Me sinto orgulhoso, pelo Heraldo e sua música, e pelo resultado do trabalho gráfico, que gosto muito.

Praia de Crystal Cove. Eu entre amigos. Na frente, à esquerda, Prof. Pedro Melo.

É fim de tarde em Orange County. Crystal Cove é um desses condomínios, construídos na década de 1990, encravados nos morros áridos que correm até as praias da região. Este, particularmente, fica dentro do Crystal Cove State Park, e é ligado a praia por uma pequena trilha que passa por debaixo da Pacific Coast Highway. A praia pequena em extensão, porém muito charmosa, é retratada no filme Beaches, (Irmãs para Sempre) com Bette Middler e Barbara Hershley, da década de 1980. No caminho, sou apresentado a um professor madrileno com quem pratico meu espanhol por alguns minutos. Momentos depois, conheço Ivone, panamenha que trabalha na UCI com marketing de cursos internacionais. São oportunidades únicas de intercâmbio de percepções do mundo. Fugidias, no entanto, como cada por do sol neste belo lugar. A festa continua, com um jantar farto e dança: forró, samba, rock. Uma geleia geral. Em meio ao clima, eu já levemente alcoolizado, vejo a lua, suprema, crescente, sorrindo como o gato de Alice. Compactua comigo a felicidade da vida, o prazer supremo de estar entre amigos. Sorrio de volta. Brindo a vida e a meus amores distantes no Brasil.



Michael Lyons e o por do sol ao fundo.



Kelly Oto, algumas caipirinhas depois.


Gely e sua "Caipiroska"


E o sol se põe no mar...

A festa continua...

Um par de horas depois, minha amiga Kelly, diretora assistente da extensão, me diz ao pé do ouvido que vai sair à francesa. Peço-lhe uma carona até o campus e, após despedir-me da anfitriã, saio.

De volta aos dormitórios, vejo que bebi demais. Gely havia insistido em oferecer a todos sua caipirinha de vodka. Eu ajudei a fazer, experimentei, e me deixei levar com a experiência. 


Experiência, sim, o dia foi uma experiência a mais que agrego e compartilho por aqui.

Para acabar, Mario Quintana, e a síntese desse sábado:
" A amizade é um amor que nunca morre".